sexta-feira, 26 de março de 2010

Início a minha incursão como “bloguista”, se é que existe essa palavra, mas se não existir recorro ao neologismo que nos pode ser facultado, e sigo dizendo que começo pela minha experiência de imigração.

Eu, baiana, nascida em São Salvador da Bahia, Brasil, como se fala por esse velho “Velho Mundo”, médica, psiquiatra, acabei por vir viver em Portugal e há um escrito que elaborei - a pedido de um colega português para uma revista de psiquiatria - que bem diz sobre a minha saga imigratória.

Aqui está ele.



Escrevo sobre a experiência de trabalhar em Portugal. Eu, Ofélia Maia, hoje com mais o “Fernandes”, do meu marido lusitano iniciei uma saga jamais pretendida! Vim por cá parar sem projectos de imigração, mas movida pela metafísica com “ a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto” e com medo de ficar como o “Esteves - sem metafísica”, como disse Álvaro de Campos em “Tabacaria”.
Vivi o que nunca imaginei na minha carreira de médica – “retornei” ao 6º ano de medicina, voltei a ser estudante depois de 23 anos de médica e especialista e me submeti a “aprender”, novamente, a fazer uma anamnese, por exemplo! Foi uma verdadeira anamnese na carreira! Francamente, gostei, foi difícil, mas gostei! Tudo era, absolutamente, “novo”, entretanto não havia hipótese (diria no Brasil – não havia saída!) precisava ter o curso de volta, a especialidade de volta, pois era por aqui que iria viver, e segui. Consegui. Com esforço pessoal, com a ajuda de colegas, sensíveis, que me respeitaram, com a oportunidade oferecida pela necessidade de profissionais para exercer a função. Ufa! Consegui! Tenho gratidão aos colegas do Hospital de Santa Maria, nomeadamente aos da Clínica Cirúrgica e da Medicina Interna que me deram muita força, a uma colega psiquiatra na cidade de Castelo Branco, que se empenharam em ajudar-me de alguma maneira. Enfim, cá estou com régua e compasso - como disse Gilberto Gil - para voltar a exercer a minha profissão – médica, psiquiatra. É importante declarar que sou feliz! Em que pesem as saudades da terra com a sua comida, clima, estilo de vida; e do poder adquirido ao longo da carreira.
E como é a experiência de trabalhar por essas margens do atlântico? Naturalmente há diferenças! Como sabemos que além dos factores biológicos e psíquicos, os ambientais também influenciam as manifestações no âmbito da saúde mental, a cultura é fundamental nessa avaliação e foi, por esse veio que andei a pensar sobre a minha experiência no Brasil e em Portugal! Tomo por exemplo a depressão.
Há deprimidos e deprimidos!
Há o Fado e o Samba! Há o Fernando Pessoa e o Machado de Assis! Há o Jorge Amado e o Miguel Sousa Tavares. Há a Amália Rodrigues e o João Gilberto. Enfim, há diferenças na forma de expressar a cultura e, portanto não pode haver só uma forma de deprimir quando há diferença para se perceber, reflectir e se relacionar com o que há em torno de si!
Deprime-se de acordo com a sua terra, com a sua sabedoria, com os seus dogmas, com a sua existência! Deprime-se de acordo com a condição de vida a qual se está submetido. Deprime-se de acordo com a sua própria história de “poder”, deprime-se de acordo com a relação que se tem com o “poder”! Compreendi que havia de compartilhar da percepção e convicção destas relações para saber entender o doente e tratar a sua “depressão”! Tratamento que não é, tão-somente, com o uso dos “psicofármacos”, mas, substancialmente, realizado pela compreensão das “relações” do sujeito, na medida em que a prática psiquiátrica não é só instaurada com a terapêutica medicamentosa, mas sobretudo pela relação médico/paciente e para que essa relação se estabeleça é preciso distinguir em que direcção vai o desejo do sujeito e como pode-se tratar aquilo que lhe falta. Não há psicofármaco que melhore um sujeito se na prática não estivermos presentes, mais ou menos, na interpretação da sua “falta”. Ser psiquiatra em Portugal, para além das “guidelines” tem sido, sobretudo, saber mover-me para além da minha cultura, saber escutar com “ouvidos lusitanos”, saber perceber as idiossincrasias que permeiam o desejo do doente. Tornei-me uma psiquiatra “híbrida”, com olhos e ouvidos bem abertos - atentos à direcção em que estou indo, sem me perder e sem me esquecer de onde venho. Inegavelmente tem sido uma rica experiência.